Wednesday, February 05, 2014

Friday, November 07, 2008



MOLECAGENS

O jipinho da polícia entrou na rua da nossa casa com a sirene ligada, trazendo a bordo metade do destacamento da cidade: três soldados. O sargento foi logo dizendo:

- Cadê o assassino?

A molecada que rodava pneu nas imediações logo formou uma multidão, ávida por saber quem iria para a cadeia. Nos olhos de cada um havia um misto de expectativa, curiosidade, medo e diversão. Mas o sargento continuou:

- Quero saber quem de vocês é o assassino! Se ninguém abrir a boca, levo todos presos agora mesmo! Vou repetir a pergunta só mais uma vez:

- Quem é o assassino?

De repente, no meio daqueles moleques todos, meu irmão levantou a mão, corajosamente:

- Sou eu, seu sargento. Pode me levar para a cadeia.

O sargento olhou para aquele piralho miúdo, de cabelos desgrenhados e rosto sardento, parecendo um tanto decepcionado com a aparente

insignificância do criminoso.

Mas, antes de mandar colocá-lo no jipinho policial, resolveu fazer o interrogatório, ali mesmo no meio da rua, aproveitando que a audiência era grande e o exemplo da punição serviria para prevenir futuros delitos:

- Então foi você que assassinou as seis galinhas?

Referia-se à meia-duzia de penosas achadas mortas no quintal da dona Nica, a qual, já inconformada com a que tinha tido igual destino no dia anterior, ao ver mais seis, não se conformou em ver perdido, metade de seu galinheiro e correu dar parte à polícia.

- Fui eu, sim senhor- respondeu o meu irmão – dando à voz um tom menos temeroso que a princípio.

- E por que você fez isso, moleque? – prosseguiu o sargento, já sentindo o peso de sua autoridade, expresso no silêncio da platéia ao redor.

- Porque eu fiquei revoltado, seu sargento – respondeu, corajosamente, meu irmão?

- Revoltado por quê?

- Porque ontem o Filipinho atirou com o estilingue e matou uma galinha da dona Nica. Depois colocou a culpa em mim. Dona Nica veio reclamar com minha mãe e tive que dormir no telhado para não levar uma surra.

- Então resolveu se vingar...

- Não é vingança, é revolta. Fiquei revoltado, peguei o meu estilingue e matei as seis galinhas.

O sargento coçou o queixo e percorreu a multidão de moleques com o olhar. Após refletir por alguns instantes, sentenciou:

- Vá chamar sua mãe. - E olhando para os seu subordinados, ordenou ao que tinha cara de fuinha:

- Traga aqui a dona das galinhas.

Dez minutos depois, tempo em que o sargento aproveitou para fumar um cigarro e os meninos aproveitaram para apostarem entre si, sobre o que aconteceria a seguir, lá estavam, diante do policial, minha mãe e dona Nica.

- Escute aqui, minhas senhoras – disse ele numa entonação quase solene – É preciso ter muito cuidado antes de fazer uma acusação. E prosseguiu:

- Por uma não ter se certificado quem foi o verdadeiro responsável pela morte de uma galinha e pela outra ameaçar o filho a ponto de fazê-lo passar a noite empoleirado no telhado, produziu-se um menino revoltado.

Não sabem as senhoras que revolta, se não entendida a tempo, pode durar uma vida inteira?

Por esse motivo, bem merece a senhora o prejuízo da perda de uma parte de seu galinheiro – E, dirigindo à minha mãe:

- E a senhora tem coragem de deixar seu filho dormir ao relento? Com o risco de cair do telhado e ter o pescoço quebrado?

Deveria levar preso é as senhoras!

Minha mãe e dona Nica permaneceram caladas, enquanto o sargento recolheu seus comandados no jipinho, ligou o motor e foi-se embora, sob os aplausos da molecada.

Daquele dia em diante, nunca mais dona Nica reclamou de penosas e nunca mais meu irmão teve que dormir no telhado.

Vivendo e aprendendo: Nos meus tempos de moleque, até sargento de polícia ás vezes fazia papel de psicólogo.

Saturday, February 23, 2008

A VELHINHA, O TELEFONE E A PINHA

A velhinha caminhava cambaleante pela rua 7 de abril, em São Paulo. Não tomara nenhuma bebida alcoólica, mas parecia que estava bêbada. Olhava os prédios, as janelas dos prédios, as lojas e a multidão que caminhava. Por isso, estava tonta. Não era acostumada a nada disso.

Moradora da zona rural, numa pequena propriedade entre Jundiaí e São Paulo, chegara de trem até à Estação da Luz, com o objetivo de chegar à companhia telefônica da rua 7 de abril.

Como viera do bairro da Luz até aquela rua barulhenta e como vencera as mil peripécias para esse feito, nem ela mesmo seria capaz de explicar. Mas estava ali, e precisava encontrar a companhia telefônica.

Uma alma caridosa ajudou-a, finalmente a chegar ao seu destino. Entrou, radiante, no saguão da tão almejada empresa.

Aproximou-se da mesa de uma recepcionista, que, prontamente sentou-a numa cadeira e, com um sorriso nos lábios, fez-lhe a clássica pergunta:

- Em que posso ajudá-la, minha senhora?

A velhinha, um dos últimos exemplares do remanescente caipira das circunvizinhanças da capital paulista, respondeu-lhe em seu clássico linguajar:

- A mocinha num se preocupa cumigo, que eu não bebi não. Só tô com um pouco de bambura nas perna de vê tanto prédio arto e fartura de gente. Mais vim aqui amode comprá um apareio de telefone lá pro meu sítio.

E explicou, à sua maneira, que o marido, velho como ela. já não tinha a agilidade de antes, para ir e voltar do sítio à cidade, pois o reumatismo não deixava. Por isso, fazia-se necessário um aparelho telefônico.

- Entendi, atalhou a recepcionista - a senhora precisa de uma linha telefônica rural. Então, para que a companhia verifique se é possível instalar um telefone em seu sítio, a senhora deve levar estes papéis, preenchê-los direitinho e trazê-los novamente até aqui, juntamente com um croquis de seu sítio...

- Crô o quê, minha fia? Óia que nesses quase oitenta anos de vida, nunca ouvi falá nesse negócio...

- Calma, minha senhora, explicou, com muita educação, a recepcionista - não se preocupe com o nome. Croquis é apenas um mapinha que a senhora deverá trazer, de sua propriedade.

-Ah, bão! - respondeu com alegria a velhinha. Pois se é só isso, já vou me indo, mode providenciá tudo.

E agradecendo a gentileza da recepcionista, despediu-se, não antes de enfiar nas mão da atendente uma moeda de um real.

- Não rejeite a grojeta dessa véia, que a moça foi muito das bondosa. E, sem dar tempo para a resposta, já sem tanta "bambura", bateu em retirada.

Um mês inteiro se passou. Numa segunda-feira de manhã, eis que a velhinha entra sorridente e vem dar à mesa da mesma recepecionista, que recebeu-a, efusivamente.

- Tá tudo aqui o que me pediu, minha fia. E foi retirando os papéis da bolsa. Por último, retirou, bem lá do fundo, um objeto um tanto grande e cheio de pontas, que fez cair, pesadamente, sobre a mesa.

Diante do olhar incrédulo da recepcionista, de suas colegas de trabalho e de todos os clientes ali presentes; acuada como quem estivesse sido apanhada roubando doce de criança, a velhinha explicou:

- Ué, a moça num disse que era pra mim trazê uma pinha???!!!

Antônio Tadeu Ayres

Monday, July 16, 2007


DOUTOR DE INTERIOR

Médico jovem, recém formado, boa pinta, bom caráter e com aquele indescritível desejo de cumprir uma nobre missão, o doutor, após examinar com cuidado todas as possibilidades, resolveu que queria ser médico de interior, de cidadezinha pequena mesmo.

Decisão tomada, mãos à obra. Cheio de boa vontade, olhou o mapa do Brasil aberto sobre a cama, deu um rodopio com a mão, fechou os olhos e fez cair o dedo indicador sobre o mapa. O destino o guiaria. A cidade sobre a qual seu dedo recaísse, seria a escolhida!

Abriu os olhos para ver o resultado. Pareceu-lhe um tanto amedrontador, apesar da decisão tomada: O vilarejo “eleito” ficava bem no meio do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, lugar para desbravadores!

Mesmo sentindo aquele friozinho percorrer-lhe a espinha, o doutorzinho não recuou: “Afinal de contas, o que sou eu? Um homem ou um saco de batatas?” – perguntou-se a si mesmo. E, convicto, reuniu seu apetrechos médicos e partiu para sua nova cidade, onde estabeleceu seu consultório.

Filho de pais abastados, acostumado a boas escolas e a um bom vernáculo, assim que os pacientes, já devidamente informados pelo velho e infalível método da propaganda “de boca em boca” começaram a disputar os lugares na sala de espera do “doutorzim”, nosso herói teve seu “batismo de fogo”.

A primeira paciente entrou aflita!

- Acalme-se, minha senhora, vamos fazer sua anamnese – disse-lhe o doutorzim, em tom de conselheiro.

- Dotô, se o senhor quer fazer “maionésia”, é pobrema do sinhô. Agora, só quero que me dê alívio desta agastura!” – respondeu a paciente em tom suplicante.

Sem a mínima noção de que seria “agastura”, o doutorzim não desanimou:

- Minha senhora, pode me dizer qual é a sua queixa?

- Dotô, tô com uma agastura que tá me matando, cá no estômbico, causa que tenho uma úrsula perfurada na diadema!

O doutor, boquiaberto, coçou a cabeça. Não entendera patavina o linguajar de sua paciente. Mas não era homem de desistir!

Levantou-se da cadeira e foi até a porta e, sem rodeios, falou alto para os demais pacientes, na sala de espera: “Sei que este é o meu primeiro dia de trabalho aqui. Mas aviso que esta consulta vai ser demorada. Quem tiver paciência para esperar, fique. Senão, volte amanhã”!

E, decidido, entrou no consultório, disposto a desvendar o mistério da estranha doença que tinha pela frente.

Aí, “coisa e tar e tar coisa” (expressão com a qual, logo, logo, ficaria familiarizado), o nosso herói empreendeu uma longa e dificílima batalha, que durou mais de meio dia.

Finalmente, lá pelas três da tarde, conseguiu descobrir que “a agastura no estômbigo, mode uma úrsula perfurada na diadema” era, trocando em miúdos (ou em bom vernáculo) “uma queimação no estômago, por causa de uma (suposta) úlcera estuporada no duodeno”.

Mais feliz do que Napoleão depois de uma batalha ganha, o dotorzim pôde inaugurar seu bloco de receituários, prescrevendo a medicação para a senhora, sua primeira paciente. Atitude que, meio constrangido deve que desistir, rasgando, em seguida, a receita: o fármaco, em questão, fazia parte do seu estoque de “amostras grátis”.

A paciente saiu satisfeita, levando uma sacolinha de quatro caixas de comprimidos e uma caixa de solução aquosa.

Ainda procurando relaxar do embate terminado, para melhor deliciar-se com o sucesso de sua consulta, olhou, displicentemente, para a sala de espera.

Lá estava, mineiramente acomodado, o seu segundo paciente que, de relance, percebeu, era mais matuto que a primeira.

Mas era homem de decisão. Endireitou os ombros e, corajosamente, quase gritou: “O próximo!

Mal sabia que outra luta começaria e só terminaria às oito da noite: o segundo paciente desejava marcar uma “operação na apênis”.

Depois de ter, finalmente, compreendido que o segundo paciente desejava, na verdade uma cirurgia no apêndice, forneceu mais algumas amostras grátis e, cansadíssimo, deu por encerrado o expediente.

Feliz da vida pelo seu primeiro dia de clínica médica exitosa, fechou o consultório e foi embora para casa, levando, embaixo dos braços um leitão e duas galinhas.

Pagamento de seus honorários!

Tony Ayres




Saturday, January 07, 2006


NO RESTAURANTE

- Quero lasanha.

Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.

O pai, que mal,acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.

- Meu bem, venha cá.

- Quero lasanha.

- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.

- Não, já escolhi. Lasanha.

Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:

- Vou querer lasanha.

- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.

- Gosto, mas quero lasanha.

- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?

- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.

Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?

- Você come camarão e eu como lasanha.

O garçom aproximou-se e ela foi logo instruindo:

- Quero uma lasanha.

O pai corrigiu:

Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.

A coisinha amuou. Então não podia querer. Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:

- Moço, tem lasanha?

- Perfeitamente, senhorita.

O pai, no contra-ataque:

O senhor providenciou a fritada?

- Já, sim, doutor.

De camarões bem grandes?

- Daqueles legais, doutor.

- Bem, então me vê um chinite, e pra ela...O que é que quer, meu anjo?

- Uma lasanha.

- Traz um suco de laranja pra ela.

Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem.
A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.

- Estava uma coisa, hem? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado - Sábado que vem, a gente repete...Combinado?

- Agora a lasanha, não é, papai?

- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais. Mas você vai comer mesmo?

- Eu e você, tá?

- Meu amor, eu...

Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.

O pai abaixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultrajovem.

Carlos Drummond de Andrade (Da coleção "Para gostar de ler, Vol.1, editora Ática)

Monday, January 02, 2006

O CANGURU TURISTA Bairro dos Jardins, 6:30 h da manhã. O cidadão acordou assustado, com um olhar angustiado. Não ouvira o despertador tocar! Estava atrasado. Que desastre! Justamente nesta manhã, que o seu compromisso agendado era com um executivo de uma grande empresa, cliente em potencial! Pulou da cama, pegou o telefone e, rapidamente, comunicou à secretária que iria se atrasar uns minutinhos. Que o executivo fizesse a gentileza de aguardar. Entrou no chuveiro, barbeou-se, botou o terno, mal deu o nó da gravata e, sem mesmo tocar no café que a empregada deixara preparado sobre a mesa, precipitou-se para a rua. Quem sabe ainda desse sorte e pegasse o tânsito bom. Tiraria o atraso e não correria o risco de perder um negócios que poderia render milhões à empresa. Ao abrir a porta, levou um susto! Um filhote de canguru vindo, sabe-se lá de onde, o aguardava, sentadinho, do lado de dentro de seu jardim! Que seria isso? Algum engraçadinho, tentando fazer uma piada de mau gosto? Algum assaltante inovador, utilizando uma nova estratégia? Um presente de um amigo australiano, enviado pelo Sedex? Não, essa hipótese era pura besteira. Tinha que sair! Não podia perder mais tempo. Mas o olhar do canguruzinho era incrivelmente meigo! Droga! Justo com ele, uma situação inusitada dessas? Cidadão politicamente correto, divorciado, morando sozinho; defensor ferrenho da natureza, militante ecológico de carteirinha, defensor dos animais em extinção e com um negócio de milhões, pendente! Quase surtou de uma súbita esquizofrenia passageira. Parte dele precisava estar no escritório. Mas, a outra parte "tinha o dever" de cuidar "deste pobre animal", tenha lá vindo ele de onde fosse. Depois de muita luta interior, saiu do surto. "Às favas com o negócio de milhões". Precisava cuidar de um animal abandonado à sua porta. E não era um mero cachorro. Era um canguru. Passou a mão no celular e ligou novamente para a secretária: - Cancele o encontro com o cliente! Aliás, cancele todos os meus compromissos para hoje. Surgiu uma emergência de última hora. Não posso ir para a empresa hoje! A secretária, eficientíssima, como sempre, anotou o recado e tratou de desemcumbir-se da missão. Agora o problema era o que fazer com o canguru! Botar no carro, não cabia. Além disso não sabia se o bicho mordia ou não. O que fazer? Depois de muito pensar, entrou em casa, trocou o terno por uma bermuda, camisetas e um par de mocassins. Em seguida, abriu o porta-malas de seu carro e tirou de lá uma corda de nylon de uns três metros de comprimento. Cuidadosamente, ainda com medo de uma eventual mordida do bicho, fez um laço e enfiou-o no pescoço do canguruzinho. "Caminhar, essa é a solução" -disse com os seus botões - "Hoje, faço minha caminhada diária mais cedo e tenho companhia. Enquanto isso, decido o que fazer com esse canguru!" Abriu o portão e saiu para a rua. O canguruzinho, todo feliz, ia saltando a seu lado, como se fossem velhos amigos. "Até que não era tão mal assim" - pensava o nosso amigo. Andou algumas quadras, vira aqui, vira ali, sempre acompanhado por olhares curiosos. "Que se lasquem esses enxeridos bisbilhoteiros" - "Minha prioridade, hoje, é esse canguru!" Sem que percebesse, em poucos minutos, passeava com o canguru em plena avenida Brasil. Aconteceu de tudo: carros passavam buzinando, motoristas gritavam, "tirando uma" com a sua cara, mamães motoristas paravam o carro, obrigadas pelos filhos, que queriam ver o "canguruzinho bonitinho". O trânsito ficou complicado. Mas, ele, impávido, caminhava com o canguru todo faceiro, como se nada estivesse acontecendo. Mas, era pura aparência. No seu íntimo, ia crescendo o temor e não podia raciocionar. Não conseguia. O que haveria de fazer com o canguru? De repente, um carro conhecido, estacionou bem a seu lado. Era o seu vizinho e colega de profissão. - Giba! Você enlouqueceu. O que faz aqui a estas horas, com esse canguru a seu lado? - Nem me fale, Nestor, nem me fale! E contou ao amigo a tragicomédia daquela manhã. - O que acha que devo fazer, Giba? O Giba coçou o queixo (não era possuidor de um QI lá muito alto). De repente, teve uma idéia brlhante: - Ora, Giba, é simples! Leve o bichinho para o Zoológico! Eu lhe empresto a minha Kangoo e ele vai numa boa! -Nestor, você é um gênio, negócio feito. E lá se foram o Giba e o canguru para a casa do Nestor, que foi na frente preparar a Kangoo. Tudo acertado, O Nestor despediu-se do amigo e foi-se para o trabalho. Mas não conseguia se livrar do problema do amigo. Passou o dia com a atenção dispersa e quase nada produziu. Até a sua secretária estranhou. Anoiteceu. O Nestor esperou no escritório passar a hora do "rush" para voltar mais tranquilo. Quando deu 20:00 h, pegou o carro e rumou para casa. Mas, ao passar pela avenida Brasil, levou um susto:Lá estava o Giba, debaixo de uma garoa fina, caminhando com o canguru, como de manhã. "Não é possível" - "pensou" - "Será que o Giba enlouqueceu?" Parou o carro e gritou para o amigo: - Ei, Giba? Não levou o canguru para o Jardim Zoológico?!!! - Sim! - respondeu o Giba, já demonstrando ser "amigão" do canguru, que degustava um sorvete - e depois do Zoológico, o levei também à Cidade das Crianças, ao Circo e ao Play- Center! E continuou caminhando debaixo de chuva com o canguru, avenida Brasil afora! Antônio Tadeu Ayres

Saturday, December 31, 2005


O NUNU

O casal chegou todo orgulhoso num reluzente carro importado, que estacionou imponentemente à porta do "Grill", o novo nome que resolveram dar às churrascarias de hoje. O atendente, garbosamente uniformizado, todo solícito, abriu a porta para o cavalheiro e a madame saírem.

Cara de executivo em férias, máquina fotográfica digital a tiracolo, bermudão e camisa esportiva, o marido aguardou pacientemente a madame retocar a maquiagem no retrovisor do carro e reunir suas bugigangas de "toucador", guardando-as, cuidadosamente, na bolsa. O atentende também esperava, com alguma expectativa no olhar.

Finalmente, a madame botou os óculos escuros Pierre Cardin e, segurando a mão do marido, saiu altiva, do automóvel. Tudo parecia transcorrer às mil maravilhas.
De repente, um grito infantil, vindo do banco traseiro do automóvel:

- E para mim, ninguém vai abrir a porta, não?

O olhar do pai, da mãe aflita e do atendente concentraram-se na mesma direção.

- É claro, minha queridinha, como é que a mamãe iria esquecer de você? - E a mulher precipitou-se, para retirar a filha do carro, mas o atendente foi mais rápido.

- Por favor, senhorita, tenha a bondade! Eu a ajudo, com os seu brinquedos!

Dessa vez, foram os pais que tiveram que aguardar com paciência, enquanto a menininha reunia duas barbies, três CD's da Xuxa, um jogo da memória, meia dúzia de bichinhos, brindes do Mc'Donald's, uma caixinha de clipes coloridos, a coleção de papéis de carta...

- Pronto, querida, vamos então?

O atendente ajudava a menininha a ajeitar os seu apetrechos num caixa colorida, e já ia estender a mão para ajudá-la a sair do carro, quando, subitamente, veio a objeção:

- Peraí! Ainda falta o meu nunu!

O pai e a mãe entreolharam-se, aterrorizados. A mãe tomou a iniciativa:

- Por favor, querida, o nunu não! Aqui não é lugar de nunu!

A coisinha amuou.

- Sem meu nunu, não desço do carro! E fechou a carinha.

O pai tentou salvar a situação:

- Meu bem, se você não descer do carro, a gente não vai poder entrar na churrascaria, e sem entrar na churrascaria não vamos poder saborear aquelas carnes deliciosas que você adora. Sem falar no sorvete de morango delicioso da sobremesa! Você vai perder tudo isso, só por causa do nunu?

- Vou! Sem nunu, não tenho fome!

A coisa ficou preta. O atendente aguardava, assistindo a tudo com um ar de incredulidade. Que parada!

- Querida, lá dentro é proibido entrar com nunu, não é mesmo, moço? - disse a mãe, dirigindo ao atendente um olhar suplicante.

Meio atrapalhado, sem nem mesmo saber o que era um nunu, o atendente confirmou:

- Sim, minha senhora, entrar com nunus no Grill não é permitido!

- Então, não vou comer. Vão vocês que eu fico aqui - sentenciou a coisinha amuada.

"Ninguém merece" - dizia o pai, com os seus botões. Mas, teve uma idéia brilhante.

- Querida, vamos fazer um trato? Se você descer do carro e deixar o nunu aí, depois de almoçar, a gente vai ao shopping comprar aquela nova barbie para a sua coleção e aproveita para assistir aquele filme do Harry Potter que você ainda não viu! Combinado, então?

- Nada feito, papai. Sem meu nunu, não almoço.

A essas alturas, uma pequena multidão já se reunira, a fim de observar o desfecho da queda de braços.

A mãe resolveu fazer uma última tentativa:

- Minha flor, se você deixar o nunu no carro, a mamãe promete que compra pra você aquela TV pink igualzinha à que a mãe da Jenniffer trouxe dos Estados Unidos para ela! Que tal? Não lhe parece um bom trato?

- Sem trato, mamãe. Só almoço com meu nunu junto!

Não tinha jeito mesmo. Ou melhor, o único jeito, já que a fome apertava e a multidão aumentava, era autorizar o nunu.

- Está bem, filhinha, você sabe que nós a amamos, acima de tudo! Pode trazer o nunu, então - gaguejou o pai.

A coisinha abriu um sorriso enorme e estendeu a mão para o atendente, que já há muito tempo não entendia mais nada, perplexo com a situação que presenciava, e preocupado com a fila de carros, que se acumulava atrás do importado em questão.

- Vamos, nunu, vamos almoçar! -disse a menina, ao descer do carro.

E entrou na churrascaria com sua caixa de brinquedos,arrastando atrás de si o seu nunu: um velho ursinho de pelúcia todo encardido e encebado, amarrado numa corda feita com três fraldas de pano encardidas!

A "troupe" (diga-se, de passagem, apenas o pai, a mãe e o atendente) entrou no "Grill" meio constrangida, enquanto a platéia, toda feliz, batia palmas, com a conquista da coisinha!

Aí está um caso para se pensar: no mundo pó-moderno do qual fazemos parte, os pais educam os filhos ou ous filhos educam os pais. A resposta fica com você.

Antônio Tadeu Ayres
antoniopsic@gmail.com